O momento em que considero que realmente comecei a entender a redação do Enem estudada no ensino médio foi quando, na minha escola particular, foi implantado um sistema de correção individualizado e detalhado dos textos. Já estando na faculdade, vi no projeto Salvaguarda a possibilidade de atuar como corretora de redação em um sistema semelhante e pensei que seria importante trazer essa possibilidade para alunos da rede pública.
E pensei só isso. Não imaginei que teria que começar pelos conceitos básicos de redação para que as correções fossem minimamente compreendidas ou que o que eu e os outros voluntários estávamos fazendo representaria, para muitos alunos, o único contato com o ensino de redação. Mas foi com isso que me deparei.
Fiz minhas primeiras correções usando termos (como tangenciamento do tema, projeto de texto e uso produtivo de repertório) que ouvia os meus professores falarem, tentando me sentir mais segura no meu conhecimento e achando que esse seria meu maior desafio. Mas não demorou muito para eu perceber que os alunos não pensavam em tudo que eu achava que pensariam ao ouvirem esses termos. Por exemplo: não era suficiente dizer que faltou desenvolver a tese para os alunos entenderem que eles precisavam colocar uma ideia geral sobre o tema no primeiro parágrafo do texto e que essa ideia deveria orientar os argumentos. Assim, no final das contas, minhas longas observações não iriam levar a mudanças concretas na forma como eles escreviam.
Perguntei para uma das alunas sobre como eram suas aulas de redação na escola, com a convicção de que ela as tinha. Obtendo uma resposta negativa, mudei a pergunta quando falei com a aluna seguinte, agora questionando se ela tinha essa disciplina. Não foi o caso para nenhum dos estudantes com quem conversei. Apenas um deles disse ter aprendido um pouco de redação a partir de um curso que ganhou de presente. Ganhou de presente o que deveria simplesmente ter na escola.
Foi nesse momento, tendo apenas quatro alunos, que descobri o que agora considero um dos maiores segredos de ensinar: no lugar de passar o conteúdo como um monólogo (da forma como eu tinha feito), é preciso dialogar com o aluno e entender sua realidade. Não podemos supor que o que é claro para nós também é para ele.
Digo segredo não porque nenhum professor do mundo tenha falado sobre isso antes – nem porque eu ache que, tendo ensinado um total de 13 alunos, eu tenha um conhecimento sequer comparável ao de tantos professores experientes –, mas simplesmente porque eu não sabia disso. Não sabia e provavelmente demoraria a aprender, não fosse por esse contraste tão grande de realidades.
Tendo sido aluna do ensino particular, sabia que as minhas experiências eram diferentes das que envolviam a vida da maioria dos estudantes no Brasil. Sabia de problemas como a falta de professores, a carência de materiais atualizados para estudo, a ausência de uma infraestrutura adequada para permitir a permanência em sala de aula e tantos outros que, embora não ocorram na totalidade das escolas públicas do país, não deixam de existir em uma quantidade considerável delas. Mas é claro que agora tenho uma compreensão muito maior da profundidade de como essa minha realidade foi diferente da predominante no Brasil.
Sei, por exemplo, que seria bom que as escolas pensassem em formas de lidar com problemas como ansiedade e depressão, os quais já percebia entre a minha turma e imagino que devem ter aumentado com a pandemia. Mas também sei que é difícil pensar em meios de fazê-lo quando essa mesma pandemia teve como um dos mais alarmantes saldos o aumento da evasão escolar. Afinal, como falar sobre ansiedade e depressão em escolas com alunos que nem estão mais frequentando esse ambiente, pois tiveram que se dedicar a atender as necessidades básicas de suas famílias? Ou, voltando ao começo do texto, como pensar na necessidade de individualizar o ensino de redação se essa é uma matéria que muitos alunos sequer têm?
São questões que parecem distantes em meio a tantos problemas mais estruturais que podem ser percebidos e, por um tempo, até me senti culpada por pensar nelas.
Atualmente, não coloco mais tudo que já pensei sobre os problemas da educação que vivi como irrelevante em meio a tantos outros problemas maiores que precisam ser enfrentados. Mas, com o voluntariado, tive a oportunidade de somar tantas outras reflexões e dar, pelo menos na minha mente, o devido espaço para a consideração de outras situações que simplesmente não experimentei.
É claro que existem questões mais urgentes ou básicas nos diversos assuntos a serem discutidos. Mas, dada a impossibilidade de abordá-las completamente nas esferas em que cada um de nós pode atuar, seja individualmente, seja dentro dos grupos dos quais fazemos parte, – ou, pelo menos, na esfera em que eu posso atuar nesse momento – resta-nos refletir, discutir e imaginar o que pode ser melhorado.
Por um lado, às vezes penso que essa ação resultará apenas em idealizações ou projetos de pequena escala. Entretanto, nos meus dias mais otimistas, penso que ela pode fazer mais do que isso e também contribuir para a construção de uma cultura geral de valorização da e reflexão sobre a educação. E essa sim permitirá que as questões básicas do tema sejam finalmente endereçadas e que possamos então avançar para as outras que, apesar de já agora percebermos como importantes, somos forçados a deixar de lado por pensarmos em soluções que parecem impraticáveis.
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Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1
A autora deste texto é a estudante Letícia de Lucena Vaz, de 21 anos e que vive em Anápolis, Goiás.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.