O Rio continua lindo
30 de setembro de 2019Caros brasileiros,
parece estranho, mas, em meio a todas as notícias ruins que emanam do Brasil ultimamente, eu ainda vejo luz. Não quero ignorar a realidade brasileira, mas tampouco quero desistir do Brasil, de seu povo maravilhoso, de um país vibrante e cheio de promessas.
Reconheço que não está fácil. Com um presidente da República cheio de rancor e perdido numa batalha contra um socialismo fantasma. Com policiais cujas "balas perdidas" atingem crianças inocentes, como recentemente a menina Ágatha Félix, de 8 anos, no Morro do Alemão, no Rio de Janeiro.
Com florestas em chamas que destroem a mata virgem e aceleram as mudanças climáticas e o aquecimento global. Com a taxa de desemprego altíssima causando desespero e o empobrecimento de muitos brasileiros. Com cada vez mais pessoas morando nas ruas, sem casa, vagando num presente sem perspectivas.
Com estudantes fazendo mutirões para consertar e limpar salas de aulas em universidades e escolas, pois as verbas no setor da educação foram drasticamente reduzidas. Com fake news e ódio espalhados pelas mídias sociais que causam estresse mental.
Tudo isso pesa e aflige. Mas persiste também a ansiedade de que tudo isso seja passageiro, de que a brisa do mar afaste a tristeza e traga novas perspectivas. Tem horas que a alma brasileira se sobressai. Na praia, no samba, no metrô, no botequim, numa festa, numa conversa.
Tive a felicidade de presenciar um desses momentos comoventes no Rio de Janeiro, no Teatro Rival. Era durante um show do cantor e compositor Bebeto: o "rei do samba-rock", cujas músicas fazem parte da trilha sonora da vida de muitos cariocas.
Durante a apresentação ficou evidente que "o rei" tinha mudado. Não era mais aquele incansável guitarrista e cantor dos anos 90 que colocava todo mundo para dançar. A vida o transformou em um artista vulnerável. "Deus me colocou de férias", disse ele, depois de se recuperar de um AVC isquêmico. Ele voltou ao palco e compartilhou os momentos doloridos com a plateia.
De repente, o samba foi interrompido por choros, soluços e silêncio. A plateia chorava junto com seu artista amado, comovida. Mas aos poucos o arrepio e a comoção foram vencidos pelo carinho e o calor humano que se espalhou na sala do teatro.
E esse calor humano foi crescendo. Carregava o cantor, a banda e até a própria plateia. Os vizinhos de mesa, separados por grupos diferentes, começavam a se falar e se abraçar. Choravam juntos, olhavam um ao outro, valorizando o momento que uniu uma plateia tão diversa.
Teve até casais que declararam seu amor um ao outro, sentindo que o amor pela vida naquela noite especial vencera os ataques permanentes contra ela. A alma carioca tocou todo mundo e levou todos os fãs de Bebeto a uma catarse coletiva. No final, todo mundo levantou e dançou. O poder da música e o calor humano venceram a doença e a tristeza. A vida triunfou e brilhou.
Nesse momento inesquecível, consegui apagar toda dor, toda tristeza e toda revolta. Senti que aquele Brasil que amo e adoro tanto continua existindo. Esse calor humano, que faz do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro um lugar tão especial. Que todo dia dá uma lição de superação e alegria apesar da bagagem pesada que cada um carrega e os abismos em volta.
Essa atitude não é ingênua, não. É uma demonstração de cidadania. Pois quem se deixa dominar por manchetes e prognósticos estritamente negativos e está à espera de um apocalipse desiste do desejo de mudanças. Acha que só um salvador da pátria poderia evitar o pior. Obrigada Bebeto, por ter feito esse esforço e dado esse recado. Aquele abraço! O Rio de Janeiro continua lindo.
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Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.
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