Eis que a Venezuela, outrora modelo de democracia próspera e moderna, foi há vários anos deslizando lentamente em direção a um regime autoritário. Um modelo de ditadura muito original, equiparável às autocracias de diversos tipos que surgiram à esquerda e à direita do espectro político no início do século 21 em várias partes do mundo.
Dê-se o nome que se prefira: democracia não liberal, caudilhismo, cesarismo, neoautoritarismo, neopopulismo, neoditadura, estados falidos, etc. Em essência, trata-se de modelos protagonizados por figuras carismáticas de eleição duvidosamente popular, com fortes propensões autoritárias. Figuras que, ao assumirem a posição de representantes dos poderes do coletivo, se estabelecem como substitutas do andaime das repúblicas e, ao mesmo tempo, como promotoras de uma ordem pessoal, simulando garantias de uma distribuição mais justa da riqueza e do resgate dos valores nacionais.
Fechadas as comportas dos poderes públicos, criminalizada a oposição, canceladas as eleições, reprimidos os protestos, o que podem fazer os cidadãos venezuelanos para tentar levar o regime instaurado pela chamada revolução bolivariana de volta à democracia?
A resposta não é nada simples. E, em alguns momentos, parece que recorrer a organismos internacionais, cujo alcance é sempre limitado, não é suficiente para lutar contra esta nova satrapia.
No entanto, a oposição venezuelana atual, diferentemente da que em 2002 tentou adiantar a saída de Hugo Chávez por meio de um golpe de Estado, tem agora toda a legitimidade do seu lado. Não apenas é apoiada pela razão política e constitucional, como também é uma maioria numérica esmagadora.
O chavismo, excepcionalmente medíocre, perdeu todo o apoio popular com que certa vez contou, depois de arruinar o país durante o período de riqueza mais importante de toda a sua história. É por isso que esse jogo perverso não tem mais sustentação material alguma, não tem mais como continuar, e as demandas da população já são incontroláveis.
Mas a saída não parece nada fácil. Ainda não se vê a luz no fim do túnel, e, portanto, este é um momento de enorme incerteza na Venezuela. Os cientistas políticos falam numa "conjuntura crítica", na qual, por ora, resta formular muito mais perguntas que respostas. "Até onde pode chegar o governo em sua aspiração por construir um regime totalitário? Quão efetivos podem ser os mecanismo diplomáticos internacionais para normalizar o conflito por meios democráticos? Quanto estão dispostas a sacrificar a oposição política e a sociedade em geral num cenário de protestos massivos? Quão intensa poderia ser a repressão do Exército?
Há alguns dias, os amigos de uma importante atriz do teatro venezuelano fizeram circular pelas redes sociais um pedido de ajuda econômica. A atriz foi acometida por um câncer no pulmão, que sofreu metástase e ameaça avançar por outras partes de seu corpo. Ela precisa com urgência de doses constantes de morfina, um medicamento que já não se encontra nos hospitais nem nas farmácias venezuelanas. E quando se encontra, é impagável, inclusive para o que resta da antiga classe média.
Desde que vi isso no Facebook, não consegui parar de pensar que esse anúncio era uma imagem com tremendo potencial simbólico, uma metáfora precisa da atual situação venezuelana: um país cansado, esgotado há quase duas décadas por uma doença maligna que o carcomeu até os ossos. Um país que hoje, arruinado, pede aos gritos o auxílio de seus vizinhos, de seus velhos amigos, para que o ajudem a encontrar a cura ou ao menos aliviar a dor do que parece uma sentença de morte.