Ocupação de edifícios com escolta policial – assim é o socialismo do século 21, ao menos na Venezuela. Militares com escudos do tamanho de uma pessoa impediram que deputados eleitos livremente pudessem entrar no Palácio Legislativo, para que Delcy Rodríguez pudesse assumir em paz o plenário como presidente da chamada "assembleia popular", junto com seus deputados. Isso se chama usurpação, tomada de poder.
Mais uma vez, os chavistas no poder mostraram que desprezam a democracia. Assumir o controle do Parlamento, símbolo supremo da livre vontade dos eleitores, e impedir a entrada de deputados é mais do que uma provocação. Com esse passo, os chavistas deixaram definitivamente claro que seu socialismo não tem mais nada que ver com democracia, mas que termina num Estado de partido único nos clássicos moldes comunistas – Cuba manda lembranças. Os companheiros nicaraguenses já mostraram que um sistema como esse também funciona com uma oposição pro forma, cujos direitos são tão escassos quanto suas possibilidades.
Após uma "eleição" para "Assembleia Constituinte" que se opôs a todos os princípios da paridade de votos, a Venezuela está diante da próxima farsa eleitoral, em dezembro, quando deverão ser realizadas as eleições regionais suspensas no ano passado. Até lá, essa assembleia, que de jeito nenhum representa o povo, terá tempo suficiente para neutralizar a oposição. Sob a direção de Delcy Rodríguez, a assembleia já se delegou poderes especiais, que fazem com lhe fiquem subordinados todos os outros organismos estatais, inclusive o Parlamento e o presidente.
Uma "comissão da verdade" deverá se ocupar das mortes nas manifestações das últimas semanas. Teme-se uma caça às bruxas contra oposicionistas. Pode-se contar com expurgos em todos os níveis, principalmente nas Forças Armadas, que desempenham um papel fundamental na manutenção dos chavistas no poder. A suposta tentativa de golpe do último fim de semana oferece um pretexto bem-vindo – nesse ponto, a Turquia poderia ter sido madrinha.
Autocratas de todos os países, uni-vos! Delcy Rodríguez pode entrar para a história como a primeira mulher nesse círculo ilustre. O presidente Nicolás Maduro, que pelo menos foi eleito democraticamente, aparentemente deu voluntariamente para ela a chave do poder. Se um dia ela vai largá-la é outra questão. Rodríguez é inteligente e retoricamente talentosa, não tem medo de escândalos e suas aparições em organizações internacionais são lendárias. Maduro ainda pretende manter uma aparência – cada vez mais rota – de democracia. Já Rodríguez, como ministra das Relações Exteriores, foi pouco diplomática, nunca recuou diante de conflitos e se mostrou uma astuta estrategista.
Seja qual for a divisão de papéis entre os dois, uma coisa eles já conseguiram: o continente americano está novamente dividido. A Organização de Estados Americanos (OEA), que desde a política de aproximação com Cuba do ex-presidente americano Barack Obama passou novamente a representar todos os países do continente, nunca chegou a uma posição comum sobre a Venezuela. Para o encontro de ministros do Exterior, que numa declaração de 16 pontos criticaram duramente a ruptura da ordem democrática nesta terça-feira (08/08), os EUA não chegaram nem a ser convidados – provavelmente para não fomentar qualquer acusação de imperialismo. Mesmo assim, cinco dos 17 países participantes não ratificaram a declaração.
Enquanto isso, Maduro providenciou que os 11 membros da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba) lhe expressassem apoio. O fato de ele aproveitar a ocasião para instar ao diálogo entre a Alba e os países críticos da Venezuela não deve ser entendido como uma tentativa de se chegar a um acordo. Esse diálogo deve acontecer sob os auspícios da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), ou seja, sem a América do Norte.
Assim, a Venezuela fomenta uma nova separação: entre os grandes países da América Latina, como México, Colômbia ou Argentina, que criticam a sua política e veem os EUA como parte do continente americano, apesar de todas as tensões; e as nações menores, que em grande parte ainda dependem do petróleo venezuelano. Isso é descaramento, mas não sem habilidade – e assim tem muito mais a assinatura de Delcy Rodríguez do que a de Nicolás Maduro.