Orquestras do Brasil e Alemanha inauguram ensaios pela internet
4 de maio de 2012A situação é curiosa: no monitor, dois jovens músicos executam passagens de um tango, repetem, experimentam modificações. Sentada diante da tela, cercada de laptop, caixas de som, folhas de música, uma violoncelista interrompe, dá conselhos, corrige, explica estratégias de interpretação em conjunto. Adele Bitter se encontra na sala de ensaios da emissora RBB, em Berlim, na Alemanha; Felipe e Kátia estão no auditório do Instituto Goethe em São Paulo.
O encontro faz parte dos ensaios entre a Orquestra Jovem do Estado de São Paulo e a Deutsches Symphonie-Orchester Berlin (DSO), para um concerto em conjunto na metrópole paulista, em dez dias. Como explicou Sabine Lovatelli, fundadora e presidente do Mozarteum Brasileiro, antes do início do ensaio: escolas e universidades já utilizam as possibilidades de comunicação pela internet em suas aulas de música. Porém esta é a primeira vez que duas orquestras ensaiam juntas, utilizando a tecnologia.
Tecnologia inventiva
A situação virtual é inédita, tanto para Adele Bitter, como para Pauliina Quandt-Marttila e Gergely Bodoky, que atendem os músicos paulistas dos naipes de violino e flauta, respectivamente. O trabalho já se iniciou há várias semanas, com workshops entre a violista brasileira Thais Coelho, também da DSO, e os músicos iniciantes em São Paulo. É ela que assiste a seus colegas, de Berlim, não só traduzindo do alemão, inglês e italiano para o português, como contribuindo com o know-how adquirido no diálogo musical à distância.
No ensaio desta quinta-feira (03/05), as novas tecnologias foram utilizadas em numerosas facetas, com criatividade. Por exemplo: nos naipes orquestrais das cordas, é importante que todos os músicos articulem as notas da mesma forma, a fim de garantir uma sonoridade homogênea. Para tal, as partes instrumentais são complementadas com marcações especiais, as "arcadas". Em condições convencionais, se um copista não assumiu esse trabalho previamente, os sinais têm que ser transmitidos oralmente para os músicos, num trabalho exaustivo.
Em vez disso, ao instruir os jovens André e Bruna, a violinista finlandesa Pauliina Quandt-Marttila simplesmente segura a sua música diante da webcam. A imagem é projetada no telão do auditório em São Paulo e seus dois interlocutores copiam rapidamente as marcações, que passarão a seus colegas de naipe da Orquestra Jovem de São Paulo, já no próximo ensaio.
A técnica moderna também se faz presente: quando se trata de conferir o andamento de uma passagem. Em vez do tradicional metrônomo, uma das instrumentistas presentes cede o seu smartphone, equipado com uma app que reproduz todas as funções do aparelho mecânico.
Charme de Ashkenazy
Assim como Sabine Lovatelli em São Paulo, o maestro russo Vladimir Ashkenazy abriu em Berlim o histórico encontro pelo Skype. Ele regerá a DSO durante toda a turnê pela América do Sul, que se estende até 18 de maio. Após um concerto didático, um ao ar livre e dois no Teatro Municipal de São Paulo, a orquestra segue para as cidades argentinas de Rosario e Buenos Aires.
O celebrado pianista e regente falou diretamente aos instrumentistas da Orquestra Jovem: "Fico feliz por irmos nos apresentar no Brasil, onde já estive muitas, muitas, muitas vezes. Já conheço bem o fantástico público aí, que é cheio de calor humano. E me alegro em especial pelo concerto para as crianças. Pois elas são o público do futuro para essa nossa maravilhosa música clássica".
Mais ou menos as palavras que se esperaria num discurso de apresentação, numa situação como a presente. Porém ditas de forma tão afetuosa e natural, que sua sinceridade fica acima de qualquer dúvida. De resto, os momentos ao lado do músico de 75 anos revelam um homem acessível, cheio de simpatia e charme. Em nenhum momento ele se esforça para lembrar o ícone mundial da música que, de fato, é. "É por isso que todo o mundo adora trabalhar com ele", comenta uma das instrumentistas da DSO presentes ao ensaio.
Ideia de futuro
O sucesso do ensaio dependeu de um bom grau de boa vontade de ambos os lados, já que os engasgos de som e imagem eram frequentes, e por vezes houve colapso total da transmissão. Como os próprios organizadores admitem, mesmo com as vantagens da internet de banda larga, a tecnologia Skype ainda não é estável o suficiente para garantir um desenrolar livre de frustrações.
O ideal seria o video live streaming através de um canal exclusivo – a tecnologia empregada por grandes casas de espetáculos na transmissão ao vivo, pela internet, de concertos e óperas, com som e imagem de alta definição. No entanto, isso encareceria extremamente a empreitada, pois implicaria reproduzir no Brasil o equipamento que é utilizado na Sala Filarmônica de Berlim.
No entanto, talvez caiba um paralelo com a energia solar e eólica: uma tecnologia é custosa na medida em que é pouco difundida e valorizada. Do momento em que suas vantagens são reconhecidas, o investimento inicial grande acaba compensando.
Mesmo para os que guardavam certo ceticismo, ao fim da sessão a opinião dos músicos envolvidos foi unânime: a conexão entre a Sala Ferenc Fricsay e o auditório do Instituto Goethe demonstrou que os ensaios e aulas virtuais têm grande potencial. Pois, quando se encontrarem em São Paulo dentro de uma semana, as orquestras já estarão bem mais próximas. Para Marttila, Bitter e Bodoky, o talento, sede de aprender e receptividade sem limites de seus jovens colegas do Brasil já são um fato.
No ensaio entre a Alemanha e o Brasil. o fator humano compensou as limitações técnicas. E uma ponte – tanto musical como pessoal – já começou a se formar entre os dois conjuntos sinfônicos, atravessando o oceano.
Autoria: Augusto Valente
Revisão: Roselaine Wandscheer