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Projeto de Código Penal mais flexível deve reavivar polêmica sobre o aborto

27 de junho de 2012

Proposta permite interrupção da gravidez até a 12ª semana se a mãe não tiver condições psicológicas para ter o filho. Apesar dos riscos à mulher e dos custos para a saúde pública, tema enfrenta resistência no Brasil.

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Foto: picture alliance/dpa Themendienst

A comissão de juristas encarregada de elaborar o anteprojeto do novo Código Penal brasileiro apresenta o documento nesta quarta-feira (27/06) à presidência do Senado. O documento abarca temas como a descriminalização do porte de drogas e a criminalização do enriquecimento ilícito. Um dos pontos mais polêmicos, porém, é a ampliação das possibilidades legais do aborto.

A proposta da comissão formada por 14 especialistas vai além da interrupção da gravidez já permitida em casos de estupro e se não houver outro meio para salvar a vida da gestante. O projeto para o novo Código Penal sugere descriminalizar o aborto sempre que houver risco à vida ou à saúde da gestante ou se for comprovado que a mãe não tem condições psicológicas para ter o filho, até a 12ª semana de gestação. Também inclui casos de anencefalia ou anomalias graves no feto – alinhando-se à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) de abril deste ano.

No Brasil urbano, mais de uma em cada cinco mulheres fez aborto antes de completar 40 anos. "Tipicamente, o aborto é feito entre os 18 e os 29 anos, e é mais comum entre as mulheres de menor escolaridade", diz a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA, 2010), financiada pelo Ministério da Saúde.

Contexto mundial

Na União Europeia, o aborto é geralmente permitido em circunstâncias mais amplas que no Brasil. Em 2007, Portugal legalizou o aborto até a décima semana de gestação. França, Itália e Alemanha, por exemplo, permitem que a mulher opte pelo aborto até a 12ª segunda semana de gravidez.

Tecio Lins e Silva Rechtsanwalt aus Brasilien
Silva: "O dano resultante da proibição é muito maior do que o dano do aborto em si”Foto: assessoria de comunicacao

Enquanto isso, na América Latina e no Caribe, sete países não permitem o aborto em hipótese alguma, entre eles Chile e Haiti. Já o Brasil, além dos casos de interrupção da gravidez por estupro, encaixa-se no grupo dos oito onde a prática é permitida para salvar a vida da mulher, ao lado de México, Paraguai e Venezuela, por exemplo.

Enquanto na Europa Ocidental a taxa de abortos é de 12 a cada mil mulheres, na América Latina, onde a legislação é mais restrita, a taxa de abortos é bem mais elevada: 32 a cada mil mulheres – segundo estudo publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o instituto norte-americano Guttmacher em janeiro deste ano.

Custo social

E quanto maior a restrição, maiores os riscos. "Onde o aborto é permitido em amplos fundamentos legais, ele geralmente é seguro, e onde é altamente restringido, é tipicamente inseguro", afirma a OMS. Do total de abortos realizados nos países em desenvolvimento, 56% são inseguros, em franco contraste com os 6% nos países desenvolvidos. Em 2008, último ano abordado pelo estudo publicado este ano pela OMS e o Guttmacher, 95% dos abortos nos países latino-americanos foram inseguros, ou seja, realizados sem as habilidades necessárias ou em ambiente sem padrões médicos ou de higiene mínimos.

“Centenas de milhares de mulheres perdem a vida ou são mutiladas pelo fato de o aborto ser considerado crime. Muitas delas precisam depois de atendimento na saúde pública. O dano resultante da proibição é muito maior do que o dano do aborto em si”, considera Técio Lins e Silva, advogado membro da comissão do anteprojeto.

"A manutenção da criminalização é equivocada, pois, além de não coibir a prática, afasta estas mulheres de um tratamento adequado dentro do sistema de saúde", completa Marta Machado, professora de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Em todo o mundo, complicações decorrentes de abortos inseguros foram responsáveis por 13% de todas as mortes maternas em 2008, quase todas elas em países em desenvolvimento. A cada ano, estima-se que 8,5 milhões de mulheres sofram complicações após abortos inseguros, e três milhões delas não recebam o atendimento médico necessário.

Marta Rodriguez de Assis Machado
Para Machado, Congresso influenciado por grupos religiosos pode comprometer aprovação da propostaFoto: Piti Reali

“Quando defendemos a ampliação da permissão do aborto, estamos defendendo as mulheres, principalmente as mulheres pobres que não podem buscar recursos na clandestinidade, em clínicas especializadas”, opina Silva.

Segundo a OMS, o aborto utilizando medicamentos, principalmente o misoprostol, se tornou cada vez mais comum, tanto em procendimentos legais quando clandestinos. Na América Latina, esse método é usual em países como Colômbia, México e Brasil – onde o uso de medicamentos para a indução do aborto ocorreu em metade dos casos analisados pela PNA.

Grande parte dos casos termina em internação. Metade das mulheres consultadas pela PNA foram internadas por complicações relacionadas à interrupção da gestação, e a curetagem após aborto foi a cirurgia mais realizada no Sistema Único de Saúde (SUS) entre 1995 e 2007.

Resistência e paciência

Apesar do custo social, a questão do aborto esbarra em ampla resistência da sociedade brasileira. "A questão sobre autonomia da mulher em matéria de direitos reprodutivos é muito controversa no Congresso, influenciado por grupos religiosos, o que pode comprometer a aprovação da proposta", diz Machado. Também Silva aponta a atuação de políticos oriundos de segmentos religiosos como um entrave.

Recentemente, antes da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, Rio+20, o Brasil cedeu à pressão do Vaticano e retirou do projeto do texto final do encontro a expressão “direitos reprodutivos”, que diz respeito à autonomia da mulher para decidir quando ter filhos.

Antes disso, em fevereiro, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) enviara carta à presidente Dilma Rousseff reafirmando a posição contrária da Igreja Católica sobre o aborto. A entidade diz que não trata a questão de forma ideológica, mas se preocupa com a vida humana.

Dilma declarou durante a Rio+20 que defende os direitos reprodutivos da mulher. A ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, também destaca que o aborto "não é uma questão ideológica, mas de saúde pública".

Rio+20 Dilma Rousseff Präsidentin Brasilien
Dilma defende abertamente direitos reprodutivos da mulherFoto: REUTERS

“Diferenças de pensamento" marcaram também o processo de formulação do anteprojeto do Código Penal, segundo Silva. Em discussões intensas, a comissão técnica integrada por procuradores, juízes, defensores públicos e advogados reuniu-se durante sete meses.

O atual Código Penal brasileiro é de 1940, e "há necessidade de atualizá-lo”, afirma Silva. Ao longo dos anos, o código recebeu alterações pontuais, como a inclusão da Lei de Drogas e da Lei Maria da Penha, que diz respeito à violência contra a mulher. A ideia é incorporar todas essas leis em um documento único.

Depois de convertido em projeto de lei, o texto começará a ser analisado pelo Congresso Nacional. “Neste ano, os parlamentares estarão ocupados com as eleições municipais. Acredito que o processo só terá andamento a partir do ano que vem”, diz Silva, prevendo uma longa trajetória.

Autora: Luisa Frey
Revisão: Alexandre Schossler