Vida privada no mundo árabe
23 de maio de 2007Foram as perguntas dos jornalistas durante uma viagem de promoção do livro pela Alemanha que fizeram Rania Al-Baz perceber que ela estava certa quando resolveu escrever sua história. "Quando eu recebi o convite de uma editora para escrever minha biografia, achei a idéia ótima. Essa vai ser uma forma de mostrar aos europeus como é a vida real na Arábia Saudita", disse.
Em seu livro, traduzido em vários países com o título Desfigurada, ela fala de amor, família, violência e de seu próprio destino. Segundo a autora, um destino que poderia ser o de qualquer mulher, sem distinção de nacionalidade ou religião. "Desfigurada" é um grande sucesso e já foi traduzido em várias línguas.
Infantil e imatura
O rosto de Rania era conhecido por toda a Arábia Saudita. Ela trabalhava como apresentadora de televisão e era uma das raras mulheres no país que se dedicavam a essa atividade. Nascida em Meca, Rania cresceu em uma vida de família abastada na cidade portuária de Jidá. Com 11 anos, ela recebeu as primeiras propostas de casamento, casou com 16 e logo foi mãe. Com 19 estava separada – seu marido resolveu se divorciar, com o argumento de que ela era muito infantil e imatura.
Para satisfazer a vontade dos pais, Rania foi para a universidade estudar Radiologia e lá era conhecida como rebelde e porta-voz de seus colegas estudantes. Durante o tempo de estudante de Radiologia, morou sozinha com sua filha: uma mãe solteira – situação incomum na Arábia Saudita, um país onde as mulheres só podem sair de casa acompanhadas por homens.
Apanhar em silêncio
Foi um vizinho que fez as vezes de agente e a levou para a televisão. No programa "This Morning in Kingdom" conheceu a fama. Apresentadora do programa, ela era conhecida e amada por todo o país, casou-se novamente com 29 anos e teve mais dois filhos. Sua família vivia do seu salário de apresentadora de televisão e, ao mesmo tempo, ela tinha que preencher as funções de uma esposa muçulmana tradicional.
Seu marido, um cantor desempregado, era violento. Ela agüentava as pancadas e mantinha o silêncio."Isso foi um grande erro", diz Rania nos dias de hoje. "Toda mulher deveria saber que não é obrigada a continuar vivendo com um homem agressivo. Um homem que bate em sua esposa, sem enfrentar as conseqüências disso, perde o controle. Em algum momento ele vai bater tão forte, que pode até matar a mulher", alerta Rania e acrescenta: "Foi o que quase aconteceu comigo".
Um rosto estilhaçado
Era 4 de abril de 2004. Rania pegou o telefone para falar com uma amiga e seu marido a interrompeu. Ele a proibira de falar ao telefone com a amiga em questão – evidente
mente por ciúmes e necessidade de demonstrar posse e poder. Por causa disso, ele a espancou até que ela perdesse a consciência. Logo depois, deixou a esposa gravemente ferida na porta de um hospital e fugiu.
Rania ficou em coma por semanas, com o rosto completamente desfigurado. Os ferimentos graves só foram curados aos poucos, com o tempo. Seu pai deixou que fossem feitas fotos dela, enquanto ela ainda estava inconsciente. Depois que acordou do coma e viu as fotos, a ex-apresentadora resolveu quebrar o silêncio e permitiu que fossem publicadas.
Tabu quebrado
As fotos do seu estado chocaram e comoveram o mundo inteiro, transformando os maus-tratos que as mulheres da Arábia Saudita sofrem em um grande tema ao redor do globo. O marido se apresentou à polícia após algumas semanas e foi condenado a seis meses de prisão, 300 chibatadas e a pagar uma quantia equivalente a 6 mil dólares à mulher.
Caso não pudesse pagar essa quantia, deveria levar uma surra comparável à que deu em Rania. Ela, entretanto, retirou as queixas que havia feito contra ele na Justiça depois de sofrer pressão de clérigos ultra-ortodoxos do país e, segundo dados da Anistia Internacional, ele foi liberado após apenas três meses de prisão.
O caso de Rania Al-Baz foi o primeiro caso de violência contra a mulher a ser julgado em audiência aberta para o público na Arábia Saudita. Feministas, escritores, jornalistas e advogados estão, desde então, se empenhando em criar e aprovar reformas constitucionais que ponham um ponto final na discriminação e na violência contra as mulheres na Arábia Saudita.
A violência mudou a vida de Rania para sempre e a decisão de divulgar as fotos foi um passo nesse sentido: desde então ela está engajada na luta pelos direitos das mulheres. Hoje em dia, ela mora em Beirute com os dois filhos do segundo casamento e continua trabalhando na televisão. (dg/jl)