Frederick Douglass, W.E.B Du Bois, Rosa Parks, Toni Morrison, Audre Lorde, Nina Simone. Quem é minimamente versado na história dos Estados Unidos (naquilo que ela tem de melhor), sabe que esses são nomes de importantes personalidades negras daquele país. Mas o curioso é que, por alguma conjunção cósmica ou por pura coincidência, todos esses homens e mulheres nasceram em fevereiro, mês que foi batizado como Black History Month.
É ainda mais curioso o fato da escolha de fevereiro como o Mês da História Negra ter acontecido antes mesmo do nascimento de algumas dessas personalidades. Em 1926, o historiador Carter Woodson (um homem negro, vale dizer) iniciou uma grande provocação sobre a necessidade em se compreender a história estadunidense a partir das ações e trajetórias de personagens negras.
Essa medida foi uma das tantas que diferentes setores do movimento negro dos Estados Unidos elaboraram para lutar por igualdade e justiça em um país que se alicerçava no pressuposto da supremacia branca e que apostou na segregação racial como estratagema para justificar a discriminação e violência que recaia sobre sua população negra.
A provocação de Woodson ganhou uma série de adeptos, e 50 anos depois, quando a luta pelos direitos civis já tinha chegado em seus momentos mais agudos, houve uma mobilização nacional para reconhecer fevereiro como o Mês da História Negra. Esse reconhecimento se transformou em importantes políticas públicas, sobretudo na área da educação.
Peso da representatividade na luta antirracista
É evidente que um mês não dá conta da complexidade histórica de um país racialmente organizado (e dividido) como os Estados Unidos. Mas a possibilidade de pensar a história de uma das maiores potências mundiais por meio de trajetórias de vidas negras não é algo trivial, ainda que esteja longe de resolver os problemas e desigualdades gerados pelo racismo.
E essa dupla constatação nos leva à pergunta: afinal de contas, qual o peso da representatividade na luta antirracista?
Se eu pedisse para você leitor/a elencar 15 nomes de pessoas negras brasileiras de diferentes áreas (não vale só jogador de futebol), quais seriam eles? Ou melhor: você, caro leitor/a, conseguiria pensar nesses 15 nomes de pessoas negras ao longo da nossa história sem ter que recorrer a um site de busca?
Não é preciso se justificar caso a resposta seja negativa. A culpa não é sua. Ou melhor, a culpa não é só sua. O racismo é uma estrutura de poder perversa não só por marcar as desigualdades a partir de critérios raciais, mas também porque ele está sempre tentando definir quais vidas e experiências humanas importam. Em última instância, o que está em jogo na lógica racista é a própria ideia de humanidade.
Nessa semana, uma loja de brinquedos de um shopping da zona Sul do Rio de Janeiro fez uma montagem em sua vitrine na qual uma boneca negra fazia par com uma boneca macaco, enquanto outras duas bonecas brancas ficavam do outro lado de uma banheira de plástico. Não é preciso ser muito letrado para entender a mensagem que a loja estava passando. A correlação entre pessoas negras e primatas é uma das imagens mais antigas do racismo. E sou capaz de apostar que todos nós já deparamos com essa imagem ao menos uma vez na vida.
O pessoal que não gosta muito do que costumo escrever aqui vai logo dizer: "mas você vê racismo em tudo! Eram só bonecos na vitrine de uma loja de brinquedo". E esse é justamente o problema. Estamos mais acostumados a conectar a experiência negra à ideia de primitivo e de primatas do que a ler, estudar e conhecer os feitos de personagens negros.
É chocante constatar que para boa parte da sociedade brasileira é natural que bonecas negras sejam equiparadas a bonecos de macacos, ao mesmo tempo em que essa mesma parcela da sociedade é incapaz de pensar em nomes de pessoas negras da nossa história.
Desumanizar e silenciar a história negra são duas faces da mesma moeda chamada racismo. E, como vimos, esse processo começa na mais tenra idade.
Das tantas coisas que precisamos na luta antirracista, a ampliação de repertório ocupa um lugar de destaque. É claro que sozinha a representatividade não conseguirá nem fazer cócegas na monstruosidade do racismo. Mas sem representatividade, não sei ao certo como podemos organizar qualquer proposta de mudança.
Não se trata de copiar o modelo dos Estados Unidos, mesmo porque no Brasil o mês de novembro já se consolidou como Mês da Consciência Negra, graças à luta histórica dos nossos movimentos negros. Trata de aproveitarmos todas as oportunidades que temos (e criar as que não temos) para desconstruir a lógica racista, ampliando nosso repertório sobre as experiências negras (e de outros grupos racializados) no tempo e no espaço.
Por que, ao fim e ao cabo, será mesmo que você conseguiria elencar 15 nomes de personagens negros da história brasileira?
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
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