"Sociedade brasileira precisa valorizar a educação"
3 de novembro de 2015O ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro disse, em entrevista à DW Brasil, que os cortes contemplados no ajuste fiscal foram lamentáveis, porém necessários. Por outro lado, defendeu que a própria sociedade precisa valorizar a educação. As famílias, afirmou, continuam preferindo o consumo perdulário à educação.
Janine recebeu a reportagem em sua casa no bairro da Aclimação, em São Paulo, onde voltou a morar após a sua saída do governo, há cerca de um mês. Na entrevista, ele destacou ser necessário ter responsabilidade com o dinheiro público, que "nem sempre foi gasto com o devido critério".
Para ele, é fundamental aumentar os salários dos professores de ensino básico. Mas, com os recursos disponíveis atualmente, é impossível pôr isso em prática. A única forma, segundo ele, seria com um aumento tributário.
"Para isso, uma estratégia seria mostrar que os recursos estão sendo bem aplicados. Assim, justificamos para a sociedade que é preciso mais imposto, que o dinheiro não vai para o ralo", explica.
Além dos livros que pretende escrever, Janine também vai se dedicar a um projeto de sua autoria no MEC, chamado "A Iniciativa Ética". Já em andamento, a proposta tem o objetivo de aumentar a responsabilidade social e a ética na educação.
Janine também fez críticas às dificuldades de diálogo da presidente Dilma Rousseff (PT), à postura da oposição durante a crise política e ao projeto do governo de inclusão social.
DW: O que o senhor aprendeu sobre a política como ministro?
Renato Janine Ribeiro: Tive uma grata surpresa de ver que há vários ministros de alta qualidade, fazendo um trabalho muito bom. A gente fala que o serviço público é ruim, mas, na minha experiência, nem do Capes e nem do MEC se poderia dizer isso. Por outro lado, foi difícil ver o quanto os cortes orçamentários inibem a ação do governo. As pessoas se acostumaram a só agir com dinheiro, e isso é complicado.
O senhor mencionou em outras entrevistas que fez medidas com menos dinheiro, mas com mais qualidade. O ajuste fiscal pode ser uma oportunidade de reavaliar algumas políticas?
Pode melhorar a gestão, isso é um fato. É o caso do Fies. Quando você começa um programa novo, muitas vezes tem que abrir o máximo possível. Depois que vê como funciona, pode alinhar melhor. Mas, ao mesmo tempo, também precisa de mais dinheiro. Para isso, uma estratégia seria mostrar que os recursos estão sendo bem aplicados. Assim, justificamos para a sociedade que é preciso mais imposto, que o dinheiro não vai para o ralo.
O ajuste fiscal do governo pode significar um retrocesso na educação?
Os cortes são lamentáveis. Mas eu creio que foram necessários. A presidente disse muito claramente em uma reunião no Ceará, com os governadores: não há dinheiro, acabou. Então não tem o que fazer. Em um sentido sim, em outro não. As medidas mais imediatas do Plano Nacional de Educação vão atrasar. Isso é muito ruim. Por outro lado, acho que temos que ter muita responsabilidade com o dinheiro público e nem sempre ele foi gasto com o devido critério.
É preciso buscar outras fontes de recursos ou o pré-sal ainda é uma esperança?
É claro que o pré-sal vai voltar a render. Mas não é uma fonte estável de financiamento. Esse dinheiro você pode colocar em um fundo ou usar com despesas que vão ocorrer uma vez só, como construção de prédios. Mas na prática isso é difícil. Veja o caso da creche: o governo federal assume a construção, um gasto único. Mas para isso, é preciso ter certeza de que a prefeitura vai colocar o custeio e que terá professores. E nós não temos hoje uma boa formação para professor alfabetizador e de pré-escola. Se eu vou construir uma creche em 2021, eu preciso ter alunos entrando em faculdades boas de formação de professor em 2017. Mas, na prática, isso não acontece, e fica um monte de construção abandonada. Essa é uma mudança na gestão que tem que acontecer, para não ter desperdício de dinheiro.
O senhor sempre fala da necessidade de aumentar os salários dos professores de ensino básico. É possível fazer isso atualmente?
Não, com os recursos de que se dispõe hoje, não. A única forma seria com um aumento tributário. Eu acho que está na hora de recriar uma faixa adicional do imposto de renda, de 35%. Hoje, a pessoa que ganha 5 mil e a pessoa que ganha 50 mil estão na mesma faixa, de 27,5%. Essa mudança pode ser feita mesmo em uma situação de crise econômica, porque são pessoas que têm dinheiro suficiente para pagar imposto.
E como fazer para aumentar a valorização e o prestígio social dos professores do ensino básico?
É um longo trabalho. A própria sociedade precisa valorizar a educação, o que não acontece. As famílias continuam preferindo o consumo perdulário à educação. Quando você examina relatórios de despesas, a compra de um livro, uma ida ao teatro ou ao cinema fica muito atrás do consumo de roupas, sair para comer fora e entretenimento em geral. Eu tenho uns conhecidos que tiraram os filhos da escola, porque houve um reajuste e eles não podiam pagar. No mês seguinte, eles compraram dois carros zero para o casal. Então, que sinal eles passaram para os filhos da importância do ensino? Fortalecer a educação em casa e fora da escola é muito importante para o aluno se desenvolver.
O senhor defendia estimular a participação das universidades federais na educação básica. Uma proposta nesse sentido chegou a ser estudada em seu período no ministério?
Não tive tempo, mas esse é um projeto que a presidente pediu que eu continuasse, com nome de "A Iniciativa Ética". Já está adiantado, apenas não tivemos tempo de colocar no ar.
Tem o objetivo de aumentar a responsabilidade social. Porque é antiético uma pessoa fazer um curso excelente de direito ou de medicina em uma universidade pública e só embolsar dinheiro quando sair. É antiético se apropriar do bem comum para uso privado. O filósofo americano John Rawls diz que a repartição de um recurso público e escasso deve ser feita da forma mais vantajosa para as pessoas que não vão receber o benefício. Por exemplo: a melhor forma de repartir 100 vagas de medicina na USP é para alunos qualificados, que tenham um compromisso com a saúde pública, com a medicina da família. Não vou dar 100 vagas para fazer dermatologia ou cirurgia plástica. Ele é um pensador liberal, aliás. Mas políticas assim são vistas como se fossem de esquerda.
Enem e debate de gênero
O que o senhor achou do tema da redação do Enem e da crítica de alguns deputados de uma suposta doutrinação?
Achei o tema muito bom, obriga o jovem a pensar em um fenômeno que é real. Sobre a crítica dos deputados, eu li as 45 questões de humanas e não me parece que haja doutrinação.
E sobre a retirada dos temas relacionados ao debate de gênero do Plano Nacional de Educação e, depois, de vários planos municipais pelo país?
Acho bastante preocupante que os setores conservadores se recusaram a discutir o conteúdo da escola e preferiram discutir essa parte moralista. Mostra um desinteresse deles pela educação propriamente dita.
Por outro lado, o texto que foi aprovado não diz que é proibido tratar de discriminação de gênero. O texto proíbe toda e qualquer discriminação, então está contemplado o assunto. Isso foi um avanço. Esse tema é delicado de tratar, mas eu penso que ele não precisava ter sido retomado do jeito que foi. Porque, cada vez que foi votada explicitamente a questão de gênero e perdeu, passou a impressão de que estava proibido tratar das questões de gênero.
Mas não era importante explicitar esse tema? Não era um argumento depois para os professores que quisessem tratar disso?
Que adianta, se foi rejeitado? O que você prefere: uma lista de 15 discriminações e cinco serem rejeitadas ou um texto contra discriminações, que te permite lutar contra todas? Inclusive porque há discriminações que as pessoas nem sabem que existem. Bullying ocorre com gays e transexuais, mas também contra gordo, nerd etc. Então é melhor ter na lei que a escola tem que ser inclusiva e acolhedora. E depois construir estratégias contra a discriminação.
Crise política
O senhor disse, antes de tomar posse, que o Brasil vivia uma grande polarização e um clima ruim para a democracia. Como esse clima afeta a forma de fazer política do governo e da oposição?
Tem setores de oposição que preferem ver o país piorando. Isso ficou nítido com a perda do grau de investimento. Então, certas medidas, que precisam ser tomadas para o bem do país, ficam emperradas porque a oposição não quer fazer absolutamente nada que possa ser bom para o governo.
O senhor mencionou que a oposição não conseguiu construir um projeto alternativo ao governo Dilma e, por isso, não temia muito o impeachment. Como o senhor explicaria essa estagnação das ideias?
De um lado, o PT se esgotou. O partido não conseguiu sair da lógica distributiva, que não funciona quando não há dinheiro. Um projeto para o Brasil hoje precisa ser econômico e social, tem que ter retomada da economia e uma inclusão social consistente, que vá adiante do Bolsa Família. Mas o PT não tem credibilidade para as reformas econômicas e o PSDB não valoriza a inserção social. Então há um vazio de propostas.
Antes de ser ministro, o senhor disse que o governo não explicava suas ações para a população, o que seria, de certa forma, uma atitude autoritária. O senhor continua pensando assim?
A presidente não tem muita paciência para o diálogo. É um traço dela que acaba repercutindo. E o segundo mandato dela começou com um problema sério: ela fez o que disse que não ia fazer durante a campanha. Isso aconteceu com o [José] Sarney e com o Fernando Henrique [Cardoso], que mudaram todo o plano econômico no dia seguinte das eleições. E aconteceu com a Dilma. Ela tem qualidades extraordinárias. É uma pessoa culta, com um compromisso genuíno com a questão da pobreza. Ela tem valores éticos de primeiríssima qualidade e um conhecimento técnico muito bom. Agora, o problema é como constrói uma base política quando o diálogo não é o ponto principal.
O senhor acha que ela não tem habilidades políticas?
Olha, ela tem essa dificuldade de diálogo. Mas veja uma coisa: ela levou para o ministério dela Kátia Abreu [ministra da Agricultura - PMDB], que é um dos ícones da direita brasileira. Ela tinha tudo para estar com Aécio, Serra ou Alckmin. Por que eles são incapazes de atrair Kátia, e Dilma consegue? E Afif Domingos [ex-ministro da Secretaria da Micro e Pequena Empresa do Brasil - PSD]? Ele é um homem liberal de cima a baixo e era vice do Alckmin. Então quando se fala da inabilidade política da Dilma, uma vírgula. Ela não tem essa limitação toda que se atribui a ela.
O senhor mencionou em uma entrevista recente que o fato de ela ser intolerante com corruptos também traria problemas...
Claro que traz, porque diálogo inclui às vezes agrados. E ela tem horror a agradar, ela não quer nem morta agradar a gente que possa ser corrupta. Todas as negociações do Congresso passavam por nomeações. Nem ela e nem o Mercadante [Aloizio Mercadante, atual ministro da Educação - PT] gostavam muito disso. Por que o Mercadante caiu da Casa Civil, o que me levou a cair da Educação? (risos) Porque o Mercadante era visto como antipático, chato. Mas isso as pessoas até engoliriam, se ele nomeasse. Ele ficava segurando e conferia os nomes. O Mercadante é muito rigoroso nisso.
O governo tem tido dificuldade para reorganizar a sua base no Congresso. O senhor acha que a reforma ministerial, que acabou provocando a sua saída, teve os efeitos esperados pelo Planalto? E como ela pode sair da crise política?
A reforma ajudou um pouco. O cerco ao Cunha [presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha - PMDB] ajudou mais. E, sobretudo, a deficiência total da oposição de ter um projeto para o Brasil. A oposição não vai conseguir tirar a Dilma sem ter um projeto melhor, ou que pareça melhor.