Há solidariedade na classe jornalística moçambicana?
26 de agosto de 2020Uma onda de solidariedade para com o jornal Canal de Moçambique levantou-se imediatamente depois do aparente atentado contra o seu escritório neste domingo (23.08). Desde ofertas de equipamento, material electrónico, apoio moral e até mesmo uma campanha de angariação de fundos para ajudar a reerguer um dos jornais mais críticos de Moçambique.
O diretor do Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD), Adriano Nuvunga, disse que "A corrupção em Moçambique corroeu o tecido social da solidariedade, mas tratando-se do Canal [de Moçambique] - um dos poucos órgãos que ainda sobram à captura do Estado - há solidariedade", avalia.
Contudo, entre os órgãos de comunicação social e jornalistas, um silêncio marcou os primeiros momentos após o incidente. Inclusive alguns órgãos não dedicaram sequer uma linha ao sucedido. Será que existe solidariedade genuína entre a classe jornalística moçambicana?
Adriano Nuvunga identifica que "a classe jornalística tem vindo a mostrar sinais de estar a ser capturada pelo poder, mas ainda restam jornalistas e órgãos bastante bons e no seio destes conseguimos ver solidariedade".
Reacção surpreendente
Mas se por um lado há um declínio da ética entre os homens da pena, por outro houve surpresas no que tange a um órgão público visto como parcial e altamente conotado com o Governo da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), a Televisão de Moçambique (TVM).
"Achei bastante interessante desta vez o facto de a TVM ter noticiado. E não podíamos ter esperado uma coisa igual da TVM, isso é de salutar, sabemos qual é a abordagem da TVM ultimamente”, nota a activista Fátima Mimbire.
Contudo, também houve um órgão que vive dos impostos dos cidadãos e que prestou um mau serviço público no caso do Canal de Moçambique. A activista critica a postura do jornal Notícias.
"A notícia para o jornal [Notícias] não é o atentado ao Canal de Moçambique, mas sim o repúdio do partido FRELIMO. Quer dizer, o jornal Notícias não achou grave o facto de o Canal de Moçambique ter sofrido um atentado", questiona Mimbire.
Segundo a activista, não foi apenas a televisão pública que esteve no seu melhor. Num raro momento, o Sindicato Nacional dos Jornalistas também decidiu sair da toca para emitir uma opinião, qualificando a ação como um atentado à liberdade de expressão e de imprensa.
"Há muita censura”
Face ao crescente cerceamento da liberdade de expressão e de imprensa que se assiste no país, que medidas urgentes devem ser tomadas? Mimbire, que também já foi jornalista, lista algumas sugestões de medidas:
"Penso que a classe jornalística devia unir-se numa força para reivindicar a liberdade, porque ninguém está a trabalhar em Cabo Delgado. As pessoas estão a ser detidas arbitrariamente, as pessoas estão a ser perseguidas, há muita censura, deveria haver uma campanha”, incita.
A activista acha também que "o Conselho Superior de Comunicação Social (CSCS) não devia ficar apenas por vigiar o comportamento dos jornalistas e fazer repúdios em relação a este caso, mas deveria encetar uma campanha junto dos detentores do poder no sentido de alertar que o espaço para o exercício da liberdade de expressão em Moçambique está a fechar-se."
Fátima Mimbire defende que o CSCS deve reunir-se com os jornalistas para em conjunto desenharem uma estratégia para que os profissionais possam operar dentro de um quadro adequado.
"O CSCS não pode continuar a ser um órgão alheio. Ele tem responsabilidades constitucionais muito claras sobre a garantia do exercício das liberdades de expressão em Moçambique. E, em última instância, o direito a informação é constitucional e todo o cidadão moçambicano tem esse direito."
União Europeia condena ataque
O Conselho Superior da Comunicação Social já mostrou publicamente a sua solidariedade ao semanário Canal de Moçambique através de um comunicado enviado esta quarta-feira (26.08) a órgãos de imprensa.
Para além de lamentar o incêndio, o CSCS espera que o incidente não prejudique gravemente a atividade jornalística da publicação e apela "ao mais rápido esclarecimento público das causas do incêndio”.
A Delegação da União Europeia em Moçambique também condenou "veementemente o incêndio criminoso nas instalações do Canal de Moçambique”, expressando a sua "inequívoca solidariedade à equipa” da publicação.
"Os órgãos de comunicação social independentes, como o Canal de Moçambique e o Canal Moz, desempenham um papel crucial para a democracia no país”, lê-se no comunicado divulgado pela UE ainda na terça-feira (25.08).
"A liberdade de imprensa e a liberdade de expressão em todas as suas formas são liberdades fundamentais que devem ser universalmente respeitadas. Instamos as autoridades competentes a investigar com celeridade este crime, a fim de levar os responsáveis à barra da justiça", conclui a nota.