Imprensa
2 de março de 2007É muito difícil que batalhas pela integridade jornalística sejam travadas no âmbito do jornalismo de comportamento, principalmente quando se trata de celebridades. Mas um evento recente levou uma revista alemã de cultura pop e comportamento a se posicionar em relação a uma prática que é mais do que corriqueira no jornalismo do país: permitir que uma personalidade leia e autorize - e muitas vezes "revise" – uma entrevista concedida, antes da publicação.
Material de relações-públicas
Para a edição de fevereiro da revista U_mag, o jornalista Volker Sievert encontrou a estrela Hannah Herzsprung para uma conversa. Depois de entregar à atriz a primeira versão da entrevista para autorização, o que foi previamente combinado, ele afirmou ter se chocado com a versão final que recebeu de volta.
O texto tinha tantos trechos cortados, que parecia mais o resultado do trabalho de um censor dos tempos de guerra do que simplesmente corrigido em alguns termos possivelmente mal utilizados.
"Eu realmente me senti censurado", disse Sievert, acrescentando que era impossível ser compreensivo com o tipo de interferência que foi feito em seu trabalho. Segundo o jornalista, o resultado entregue pela atriz estava mais parecendo um texto de assessoria de imprensa do que uma entrevista real.
A resposta dada pela revista para o caso Herzprung foi publicar a entrevista na íntegra, com os trechos cortados em preto. Sievert declarou que a revista se sentiu usada e que a intenção na publicação do material era deixar o leitor ciente de uma prática comum no jornalismo alemão.
A situação serviu para trazer à tona uma discussão há tempo adormecida nas redações do país. Muitos acreditam que esse tipo de prática deixa a mídia e as personalidades públicas em uma relação muito confortável na Alemanha, o que seria um lucro para o jornalismo.
"Uma mão lava a outra"
"Os jornalistas não estão legalmente obrigados a pedir autorização para publicação das declarações de seus entrevistados, mas infelizmente essa é uma prática comum", esclarece Hendrik Zörner, porta-voz da Associação Alemã dos Jornalistas (DJV).
Segundo ele, jornais de grande circulação têm práticas jornalísticas mais aceitáveis, mas as publicações locais, que são maioria no país, muitas vezes precisam negociar suas entrevistas com as personalidades e , assim, permitir que elas revisem suas declarações antes de publicadas. "Assim, uma mão lava a outra", acrescenta Zörner.
Por outro lado, Ingrid Kolb, diretora da Escola de Jornalismo Henri Nannen, de Hamburgo, afirma que algumas das maiores publicações da Alemanha são conhecidas por permitir a revisão de suas entrevistas com pessoas públicas. São os casos das revistas Der Spiegel e Stern.
"Elas [as entrevistas] podem ir e vir várias vezes entre jornalista e entrevistado, com cada um dos lados melhorando seus argumentos, esclarecendo seus pontos de vista. Em uma situação ideal, serve aos interesses dos dois lados."
Se não serve a interesses, a prática controversa pelo menos estabelece um confortável "toma-lá-dá-cá": enquanto um lado sempre precisa de um palanque para divulgar suas próprias idéias, o outro está sempre na busca de material interessante para preencher as necessidades do noticiário.
Ainda assim, a prática fere o ideal de jornalismo de muitos países como EUA, Inglaterra e Austrália, onde permitir que um entrevistado editasse a própria entrevista seria até motivo para demissão do jornalista.
"Sei que há uma enorme diferença entre os mundos germânico e anglo-saxão nessa questão", disse Kolb. "Mas na Alemanha, já é costume pedir autorização para publicar entrevistas ou longas declarações. Em geral, o entrevistado já avisa ao jornalista que espera por isso."
Revista pode ficar no limbo
Segundo Kolb, publicar a entrevista com as partes cortadas marcadas foi um ato inconseqüente da editoria da U_mag. O que certamente vai levar o entrevistado a não mais querer receber a revista.
Zörner acredita que a prática de pedir autorizações é um ponto fraco do jornalismo alemão. Os jornalistas são, se vistos sob essa perspectiva, muito condescendentes. "As entrevistas têm uma função informativa e esclarecedora. Mas se são mudadas posteriormente, deixam de ser entrevistas e passam a ser material de divulgação", critica o porta-voz da DJV.
Caso com precedentes
A publicação da entrevista cortada por Hannah Herzspung tem precedentes na mídia alemã. O último caso semelhante foi manchete nos jornais em 2003, quando a imprensa, em conjunto, resolveu atacar um costume de pessoas relacionadas ao governo de censurar as entrevistas que concediam.
Naquele momento, alguns dos jornais de maior circulação da Alemanha, incluindo Frankfurter Allgemeine Zeitung, Die Welt, Süddeutsche Zeitung e Financial Times Deutschland, publicaram editoriais e artigos de opinião se posicionando contra a prática de pedir aprovação para a publicação de entrevistas.
O ataque que mais chamou atenção foi feito pelo die tageszeitung (taz). O jornal colocou em suas páginas, como forma de mostrar que as pessoas públicas precisam da imprensa tanto quanto a imprensa delas, uma entrevista censurada com o então secretário-geral Olaf Scholz, do SPD: com todas as respostas cortadas, em protesto à censura.
Sem riscos para a democracia?
De acordo com Zörner, a imprensa alemã tem outros pontos mais fracos que a prática de pedir autorização para publicar as entrevistas. Um relatório recente da organização Repórteres Sem Fronteiras deixou o país em 23º lugar em um ranking de liberdade de imprensa, baseado principalmente no caso controverso em que o governo fez buscas de pessoas físicas através das redações de jornais, praticamente obrigando os jornalistas a revelar suas fontes.
"Mas apesar de todos os problemas e perigos", diz Zörner, "em geral, o jornalismo alemão é muito bom em termos de qualidade."
"Não dá para dizer que isso [a prática de pedir autorização para publicar as entrevistas] põe em risco a democracia." Ele ressaltou que, além de tudo, as entrevistas não são as únicas ferramentas de que os jornalistas dispõem: sempre há reportagens, artigos de opinião e outras formas de texto jornalístico.