Há muito tempo, eu não via tanto verde e amarelo. As cores da bandeira, que tanto desgosto nos causaram nos últimos anos, estão nas redes sociais dos meus amigos, na mídia e em qualquer lugar que fale sobre o Brasil. Até no Tagesschau, mais ou menos o equivalente ao Jornal Nacional da Alemanha, essas cores apareceram na noite deste domingo (05/05).
A diferença é que, desta vez, as cores da bandeira do Brasil não representavam o patriotismo violento e conservador – aquele que, para pessoas como eu, causa desgosto e enjoo –, mas uma festa libertária, subversiva e de celebração da diversidade.
Falo, claro, do show da Madonna, o maior de sua carreira, o quinto maior concerto já feito no mundo, que reuniu 1,6 milhão pessoas em uma cidade violenta como o Rio de Janeiro sem que maiores tragédias fossem registradas – o que, por si só, já é um feito e tanto. Sim, sabemos fazer festa. E isso atrai turismo, dinheiro e gera empregos, o que é ótimo. Mas ainda somos mais que isso.
E Madonna, ao encerrar sua turnê Celebration Tour em Copacabana, com essa mega festa ao ar livre, conseguiu reunir em duas horas o que, acho, nosso país tem de melhor.
O fato do show ser uma celebração democrática e gratuita para centenas de milhares de pessoas é mais do que simbólico. Seria difícil reunir o melhor do Brasil sem brasileiros, não? Ou apenas com uma lista de vips escolhidos a dedo.
"Peguei o metrô e estava lotado, todo mundo cantando e batendo leque", me disse uma amiga carioca que foi ao show.
Os leques de que ela fala formaram uma espécie de segunda trilha sonora para o show. Em alguns dos vídeos é possível ouvir sons de "coros" de leques, uma marca de homens gays ou drags saudando Madonna, que sempre foi e sempre será uma mãe simbólica dessa comunidade. E ela sabe bem disso.
"A comunidade queer nunca me largou e eu sempre vou lutar por vocês", disse, no palco, para a multidão, cuja imensa maioria não estava no grupo heteronormativo.
Essa comunidade, enorme e forte no Brasil, está entre os grupos que mais sofreram com o conservadorismo e com o ódio dos últimos anos, vamos lembrar. Eles mereciam, e muito, essa celebração da liberdade. E nós, mulheres, que também sofremos muito nos últimos tempo, e que desde adolescentes temos Madonna como guia, merecemos também.
A cantora, que sempre pregou a diversidade, apostou no Brasil diverso (que é gigante) e colocou tudo (e todos) ao mesmo tempo em seu show de cerca de duas horas.
Beijo gay e lésbico ainda são tabu para muitos? Pois Madonna foi lá e beijou uma trans no palco. Falar de sexualidade feminina é problemático, principalmente se a mulher tiver mais de 50 anos? Pois Madonna, de 65 anos, foi lá e simulou uma cena de masturbação diante de milhares de pessoas e mais toda a audiência da Rede Globo, que transmitiu o espetáculo.
Sim, foi preciso uma mulher transgressora e artista corajosa de 65 anos para quebrar, em duas horas, todos esses tabus de uma vez só.
Isso não é pouco em um país onde uma pessoa transexual é assassinada a cada dois dias e meio, de acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) divulgado este ano, e onde os números relacionados a crimes relacionados ao machismo também batem recordes todos os anos.
Viva a Pabllo
Não por coincidência, a segunda estrela do show, depois de Madonna, foi a cantora Pabllo Vittar, com quem Madonna rebolou e dançou, enquanto as duas puxaram bandeiras do Brasil. Em um dos momentos mais icônicos, Pabllo pegou, literalmente, Madonna no colo. Além de Pabllo e Madonna correndo e dançando pelo palco, o número do hit Music contou também com jovens percussionistas das alas mirins de várias escolas de samba. Dá para ser melhor?
A escolha de Pabllo para participar do show foi perfeita. A drag, além de ser uma das cantoras mais famosas do Brasil, é a cara da nova geração queer, muito mais bem resolvida do que as gerações anteriores.
Mas é preciso lembrar dos mais velhos. E eles estavam lá. Em um dos números mais emocionantes da Celebration Tour, Madonna lembra de seus amigos que morreram de aids nos anos 80 e 90. A mais que esperta produção de Madonna foi lá e lembrou de algumas das nossas maiores perdas para a aids, como Cazuza, Renato Russo e o escritor Caio Fernando Abreu, por exemplo. Esse trio é parte do que temos de melhor (pelo menos para a minha geração, que foi "educada" por eles).
Mas o show ainda teve muito mais do melhor do Brasil. Em Music, enquanto Pabllo Vittar e Madonna dançavam com a bandeira, no telão, imagens de brasileiros de respeito eram exibidas. Entre eles, estavam a ativista Marielle Franco, o educador Paulo Freire, a ativista e ministra do Meio Ambiente Marina Silva, o rapper Mano Brown, a cantora Maria Bethânia, o ativista cacique Raoni, o indigenista Bruno Pereira (assassinado na floresta amazônica ao lado do jornalista britânico Dom Philips), a atriz Fernanda Montenegro e muitos outros brasileiros que nos ensinam e representam.
É sensacional que essa retomada do "Brasil que deu certo" seja feita por uma mulher de 65 anos.
Madonna é uma das primeiras mulheres a falar sobre etarismo, o preconceito contra a idade. Por mais de uma vez, ela afirmou que não iria mudar de acordo com os anos e que também não "desapareceria".
Ela já disse que a coisa mais polêmica que já fez na vida foi "continuar por aí".
Que bom que ela continuou e que nos deu mais essa lição: não há idade limite para ser livre nem para quebrar tabus. E até para alegrar um país. O Brasil estava precisando.
_____________________________
Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.