"Esse shorts está muito curto. Se você passar na porta de um bar assim vão mexer com você." Eu tinha uns 13 anos quando ouvi isso do meu pai. Eram os anos 80 e ele não estava exatamente errado.
Logo eu descobriria que era melhor ser mais radical e atravessar a rua para evitar passar na porta de botequins e assim fugir das tais "piadinhas". Na época, ainda criança, eu não sabia que aquilo era assédio.
Hoje, muitas meninas do Brasil já sabem que "não é não" e que passada de mão é importunação sexual. E é crime. Sim, o ato de estranhos tocarem o seu corpo, algo que quando eu era adolescente era visto como uma coisa praticamente inerente à condição feminina, hoje pode, teoricamente, ser motivo de prisão.
Avançamos muito. Mas ainda não é o suficiente.
Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha e pelo Fórum de Segurança Pública, metade das brasileiras (46,7%) sofreu algum tipo de assédio sexual em 2022 nas ruas, no transporte público ou até em casa. Todas as pesquisas mostram também que a época em que isso mais acontece é na adolescência.
Essa realidade precisa mudar. E por isso, vez ou outra, muitas mulheres remexem seus traumas e compartilham suas histórias em redes sociais com esperança de que isso ajude a melhorar a vida de outras mulheres.
O último fim de semana foi um desses momentos: li no Twitter vários testemunhos tristes de mulheres elencando os abusos que sofreram. Eles eram acompanhados de frases fortes e reais, do estilo: "toda mulher brasileira já foi vítima de abuso", ou "ser mulher no Brasil é horrível" (spoiler: isso é verdade).
Os relatos foram motivados por um caso exibido em rede nacional, no Big Brother Brasil. Uma mulher, a mexicana Danna, foi importunada sexualmente por dois participantes: MC Guimê e Cara de Sapato. Eles foram expulsos (era o mínimo).
Na vida real, não podemos "expulsar pessoas". A realidade é bem mais complexa.
Por isso, no dia a dia, mulheres e meninas ainda precisam recorrer a táticas de segurança, como ligar para uma amiga assim que chega em casa, usar determinadas roupas para pegar transporte público e por aí vai. Em geral, mulheres não podem simplesmente sair e andar em paz na hora em que bem entendem, uma coisa tão básica.
Em muitas cidades, homens também temem a violência, claro. Mas essa também mira mais as mulheres, mais vulneráveis.
De noite no parque
Andar na rua sem se preocupar, mesmo quando está vazio e é de noite, devia ser algo simples, uma coisa a que todos têm direito. Mas, como mulher brasileira morando na Alemanha, ainda me choco com o fato de poder andar sozinha tranquilamente na rua. Todas minhas amigas brasileiras que moram aqui sentem o mesmo, uma certa emoção por poder andar de noite.
O que para a maioria dos cidadãos é uma coisa banal, para a gente tem sua mágica.
Na Alemanha, o assédio na rua é algo muito mais raro. É a exceção, não é a regra. Em uma cidade como Berlim, geralmente ninguém olha para nada.
E tem mulher brasileira (e de outras culturas muito machistas) que até acham isso ruim.
Explico: tem gente que está tão acostumada com os fiu-fius, cantadas e os homens que viram no meio da rua ostensivamente para darem "olhadas", que se sentem feias e invisíveis quando estão por aqui. "Ninguém está me notando. Será que tem algo errado comigo?" Sim, crescer em um ambiente machista faz com que a gente ache que depende de olhares masculinos para se sentir bem e que cantadas e olhares babões são uma deferência, não misoginia e falta de respeito.
Com o tempo, acho que elas acabam percebendo que poder andar em paz e em segurança é muito melhor. Triste é a gente ter que morar em outro país para ter essa sensação.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.