Porque não se fala sobre os direitos humanos no Egito?
2 de julho de 2023Assinala-se, esta segunda-feira (03.07), uma década desde o golpe de Estado que deu origem ao atual governo do Egito. A 3 de julho de 2013, os militares egípcios destituíram do poder o primeiro Presidente democraticamente eleito no país e instauraram um governo provisório.
Na altura, com o país a atravessar uma grave crise política e económica, um general de topo do exército egípcio, Abdel-Fattah al-Sissi, explicava aos seus concidadãos que os militares haviam deposto o Presidente Mohamed Morsi porque este não tinha conseguido criar "um consenso nacional". Garantia ainda que os militares não tinham interesse em manter o poder político e facilitariam o regresso a um governo democrático.
Dez anos passaram e al-Sissi ainda está no poder. A qualidade de vida do cidadão comum egípcio está pior do que nunca. A economia está em crise, sobrecarregada com a dívida externa, com uma inflação crescente e com uma moeda que se desvalorizou quase para metade. Estima-se que um terço dos 105 milhões de egípcios viva na pobreza.
Para além disso, cada vez mais jornalistas independentes e ativistas anti-Governo têm sido perseguidos ou detidos.
O "think tank" norte-americano Freedom House classifica o Egito como um país "não livre" e que tem, nos últimos cinco anos, vindo a cair no seu ranking anual que avalia os parâmetros dos direitos políticos e liberdades individuais de cada país. O Egito caiu dos 26 pontos em 100 em 2018, para os 18 em 100 em 2023. Para efeitos de comparação, Marrocos obtém 37 pontos em 100, enquanto a Alemanha obtém 94.
O país tornou-se também líder mundial em matéria de pena de morte. E a nova legislação, incluindo uma lei que obriga as organizações não governamentais a registarem-se junto do Estado, reduziu ainda mais o espaço para a atuação da sociedade civil ou o ativismo.
Abordagem equilibrada precisa-se
Observadores ouvidos pela DW afirmam que, tanto os vizinhos regionais do Egito , como os aliados ocidentais, têm tido uma abordagem desequilibrada em relação a estas questões. Isto porque abordam regularmente os problemas económicos do país, deixando de lado o seu historial em matéria de direitos humanos.
No início de 2022, mais de 170 deputados de vários parlamentos europeus escreveram uma carta aberta aos seus próprios diplomatas e embaixadores no Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, pedindo a criação de um órgão especial para acompanhar a deterioração da situação dos direitos humanos no Egito. A carta foi enviada pouco antes da reunião anual do Conselho.
"Estamos extremamente preocupados com o fracasso persistente da comunidade internacional em tomar qualquer medida significativa para resolver a crise dos direitos humanos no Egito", escreveram os políticos. "Este fracasso, juntamente com o apoio continuado ao governo egípcio e a relutância em falar contra os abusos generalizados, só contribuiu para o aprofundar do sentimento de impunidade das autoridades egípcias".
Um ano mais tarde, pouco antes da reunião anual seguinte do Conselho, sete ONG de defesa dos direitos humanos publicaram outra carta aberta, abordando a questão.
Não houve "qualquer seguimento consequente (...) apesar da situação dos direitos humanos no Egito se ter deteriorado ainda mais", diz a carta, assinada por sete organizações, incluindo a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch e a Repórteres Sem Fronteiras.
De visita à Alemanha no verão passado, Sanaa Seif, irmã de Abdel-Fattah, um dos presos políticos mais conhecidos do mundo árabe, queixou-se do mesmo.
"Não faz sentido quando vejo os políticos alemães a evitarem falar de direitos humanos", disse Seif à DW na altura. "É como se não quisessem ser ouvidos".
O que justifica este silêncio?
Para Timothy Kaldas, diretor-adjunto do Instituto Tahrir para a Política do Médio Oriente, há uma série de fatores.
Situado na intersecção entre a África, a Ásia e a Europa, o Egito tem uma localização estratégica muito importante e, dada a dimensão da sua população e do seu exército, tem sido frequentemente considerado uma potência regional importante. Como tal, tem sabido colocar diferentes aliados internacionais uns contra os outros.
"Quando o Egito é pressionado pelos Estados do Golfo, pode recorrer aos EUA e, quando é pressionado por estes, pode recorrer a França", explica Timothy Kaldas, que acrescenta:
"Isto surge frequentemente nas reuniões. Se formos às reuniões dos ministérios dos negócios estrangeiros ou em instituições financeiras internacionais e falarmos de condicionamentos [em matéria de direitos humanos], vai haver alguém a dizer: 'bem, e depois se eles forem para aquele outro sítio e nós perdermos o acesso?'”.
O Egito também tem sido hábil na construção de laços bilaterais através de grandes negócios de armas, explica Kaldas. Um relatório anual francês sobre a venda de armas, publicado no final de 2022, mostra que o país tem sido o principal importador de armas de França desde 2012. É também um dos maiores compradores de armas da Alemanha. O volume de exportações de armas para o Egito aumentou durante o governo de al-Sissi e transformou o país no terceiro maior importador de armas do mundo.
E as razões não se ficam por aqui. Apesar do autoritarismo de al-Sissi, o Egito é um país relativamente estável no Médio Oriente, especialmente quando comparado com a Síria ou o Iémen.
"Ou seja, é mais fácil justificar a injeção de dinheiro no Estado egípcio, na esperança de que este mantenha a estabilidade". Até porque, continua o diretor-adjunto do Instituto Tahrir para a Política do Médio Oriente, "o Egito tem 100 milhões de habitantes". Para uma Europa, incessantemente assombrada pelo espetro da migração ilegal e pela potencial reação política populista à mesma, "isso é muito importante", diz.
Ainda assim, argumenta Timothy Kaldas e outros analistas, nenhuma destas razões desculpabiliza o silêncio sobre os direitos humanos no país.
"O problema é que, fundamentalmente, os Estados ocidentais não conseguem muitas vezes avaliar a falta de visão da sua abordagem. Não é tanto que estejam a obter estabilidade em troca de olharem para o lado em relação às violações dos direitos humanos. Na verdade, as violações dos direitos humanos estão a contribuir diretamente para a instabilidade económica do Egito. A crise económica no país deve-se ao facto de a estratégia [de al-Sissi] da última década ter sido a de utilizar o Estado de forma imprudente para financiar a sua consolidação do poder e a sua rede de clientelismo", diz o analista.
Mega-projetos
Um estudo recente do Instituto Alemão para os Assuntos Internacionais e de Segurança em África e no Médio Oriente, intitulado "Empréstimos ao Presidente", dava conta que "os fundos disponíveis não são canalizados para investimentos produtivos para o futuro, mas sim para projetos de infraestruturas economicamente questionáveis e servem, pelo menos indiretamente, para financiar a repressão policial".
O mesmo documento dava conta que foram os militares egípcios os que mais beneficiaram deste dinheiro, em grande parte proveniente de empréstimos estrangeiros.
"Este foi um fator decisivo para a consolidação do poder do Presidente al-Sissi", disse Stephan Roll, responsável pela investigação em África e no Médio Oriente. "Para [al-Sissi], a lealdade das forças armadas tem sido o pré-requisito mais importante para impor uma ampla repressão policial-estatal... Dezenas de milhares de presos políticos e um número dramático de sentenças de morte e execuções, mesmo para os padrões egípcios, são uma expressão deste desenvolvimento."
Tanto Stephan Roll como Timothy Kaldas sugerem uma solução semelhante: reconhecer as ligações entre o dinheiro que entra no Egito e as violações dos direitos humanos cometidas pelo Estado.
"Não cabe a uma potência externa forçar o Egito a tornar-se uma democracia", diz Kaldas. "Mas a tarefa é deixar de subsidiar a autocracia e facilitar a transformação do Egito numa ditadura".